No início da década de 50 do século passado, as audiências femininas vibraram com Stanley Kowalsky, o personagem interpretado por Marlon Brando no filme Um Eléctrico Chamado Desejo realizado por Elia Kazan e baseado na peça homónima de Tennessee Williams. O protagonista deixava de ser o herói romântico galanteador para ser um homem bruto, alcoólico, capaz de agredir a mulher para depois implorar pelo seu amor. A relação física e emocionalmente abusiva é tolerada pela sua componente erótica, o poder manipulador e animalesco de Stanley conduz Stella à irresistibilidade do ato sexual e à submissão.
O personagem de Brando marcou toda uma geração e reforçou um arquétipo socialmente permitido do poder discricionário do homem face à mulher na relação íntima. O desejo masculino/feminino heterossexual confundiu-se com uma ideia de posse/submissão transformando a mulher num objeto dependente suscetível de ser violentado para poder usufruir do prazer último da sexualidade, ficar à mercê do parceiro dominador.
A erotização da rendição sexual ao outro é transversal a relações heterossexuais e homossexuais. Para além da sexualidade ser colocada ao serviço de relações sociais de poder, esta dinâmica relacional sugere falhas na estrutura da personalidade e na forma como o poder interno do indivíduo (ou a falta dele) é transformado em posições de domínio e submissão e na consequente erotização das mesmas.
Êxitos recentes como a obra Cinquenta Sombras de Grey ou a série Big Little Lies retratam mulheres socialmente adequadas mas com dificuldade em resistir às imposições dos parceiros agressores, em grande medida pela erotização da submissão. Apesar de tudo, estas últimas obras refletem um maior poder das vítimas para encontrar formas de se opor aos parceiros sádicos, embora esta oposição se converta mais frequentemente na inversão das posições sado/masoquista do que no desfazer das mesmas.
Os relatos impressionantes das pessoas que sucumbem nas mãos dos perpetradores não têm gerado suficiente procura de explicações para o enquadramento psicológico dos indivíduos agressores e das vítimas complacentes. Contudo na área da psicanálise já há muito que se caracterizou o narcisismo maligno como um dos fundamentos possíveis da dinâmica de relação sadomasoquista.
Coimbra de Matos define a perturbação narcísica fundamental como uma insuficiente valorização do próprio: “Pouco valorizado (não narcisado) e/ou desvalorizado (desnarcisado) pelos outros – a começar pelos objetos fundadores do self (os pais ou os seus substitutos) – o sujeito não aprende a valorizar-se/auto-valorizar-se (narcisar-se), desiste de o fazer ou mesmo desvaloriza-se sistematicamente.”
Segundo este autor, na relação amorosa, o indivíduo narcísico procura reparar a lesão narcísica através de várias estratégias compensatórias que podem assumir formas benignas ou malignas. A psicanalista Isabel Mesquita denomina-as pseudo-relações ou relações de completação – o outro existe para cumprir uma função e colmatar as falhas nas relações com os cuidadores primários e não para estabelecer relações de troca maduras e recíprocas.
Os processos benignos são: a hipercompensação narcísica – o sentimento de inferioridade é compensado por uma ilusão de grandiosidade face ao parceiro e aos outros em geral – o narcisismo é alimentado por parceiros que permanentemente elogiam e admiram o sujeito; o depressivo-masoquista – o indivíduo submete-se ao outro na medida em que o idealiza, uma variante da megalomania do primeiro processo referido. São o caso de pessoas que procuram parceiros ou pessoas sentidas como representações ideais, que compensam as falhas internas, indutoras de sentimentos de culpa e inferioridade (o que se sente fraco procura alguém visto como forte, o que se sente feio arranja uma mulher bonita ou o que se sente estúpido junta-se aos intelectuais). De certa forma, estes indivíduos tentam preencher a falha de uma imagem idealizada dum pai ou de uma mãe na infância, função designada por Heinz Kohut como Imago Parental, fundamental para a narcisação da criança.
Nas formas malignas o sujeito diminui o outro para se sentir maior. São pessoas que escolhem parceiros que possibilitam a libertação de sentimentos de desvalorização através da projeção dos defeitos próprios no outro. Kernberg exemplifica com homens que escolhem mulheres feias para sobressair a sua própria beleza e assim suscitar admiração. Coimbra de Matos descreve o lugar do outro como “um escarrador para cuspir a sua estupidez.”
Estas dinâmicas são frequentemente pontuadas pela inveja desencadeada por alguma qualidade que o outro possua e que leve o sujeito narcísico a sentir-se inferior o que promove o ataque destrutivo ao narcisismo do outro através do insulto, humilhação e desqualificação (“tens a mania que és inteligente mas não passas dum idiota”). Segundo Isabel Mesquita “esta agressividade, pela desvalorização do outro, permite tornar menos consciente o sentimento de vergonha do próprio, na medida em que ele passa a ser o objeto vexatório e dispiciente.”
Estas relações são muitas vezes caracterizadas por uma ambivalência em relação ao outro que é sentido, ora como alguém ideal com quem o indivíduo se gostaria de se identificar, ora como alguém diminuído onde o sujeito narcísico coloca todos os defeitos. David Shnarch descreve esta dinâmica como funcionamento emprestado (borrowed functioning): quando o outro é visto como mau ou estando mal, o próprio sente-se valorizado, quando o outro sobressai e se sente bem, o sujeito sente-se inferiorizado. Coimbra de Matos denominou esta dinâmica como um sistema de vasos comunicantes em que o narcisismo circula de um para o outro.
O desejo de posse do outro esconde uma fantasia de controlo omnipotente do parceiro em que o sujeito se funde com o outro tanto para se apoderar das suas qualidades como para evacuar neste o que tudo o que causa desprazer ou é sentido como inferior em si próprio. São por vezes relações tirânicas em que há uma recusa da subjetividade do outro com vista a ser criada uma ilusão de segurança. Neste contexto, a ideia de traição ou separação é sentida como demasiado humilhante e vexatória para ser tolerada e conduz à agressão ou mesmo ao homicídio do parceiro.
No recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto o juiz alegou ser compreensível que o arguido agredisse de forma violenta a companheira por esta ser uma mulher adúltera. Na verdade, o acórdão fundamenta e defende os pressupostos da patologia narcísica maligna em virtude de ser intolerável para o sujeito narcísico a traição. O tribunal legitimou o comportamento patológico do arguido baseado na tríade omnipotência, controlo e desprezo e vitimizou duplamente a mulher deste.
Boa noite Rui,
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After my separation with Richard I have been in quit a mess.
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However I still want to grasp better what mine part in this dance.
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Marga
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Dear Marga you are welcome to have a session with me whenever suits you!