Raiva e Controlo na Relação

As crises nas relações, no trabalho, na família, no amor, dão muitas vezes origem a sentimentos de raiva difíceis de controlar. Nas manifestações desencadeadas pela crise económico-política, os manifestantes tentam derrubar grades e atirar pedras aos polícias, percepcionados enquanto símbolos do Estado, elemento tornado ameaçador (e potencialmente destruidor) da segurança do indivíduo e do bem-estar social. Tal como na natureza, a resposta dos seres humanos perante a ameaça externa imprevisível é fugir ou lutar. A raiva suporta o instinto de lutar pelo território, pelo amor e pela vida. A raiva serve essencialmente como mecanismo de defesa do eu perante uma ameaça destruidora do mesmo.

Contudo, nas relações, a raiva é percepcionada pelo outro como uma intenção expressa de magoar ou ferir. Insultos, ameaças, julgamento depreciativo da outra pessoa e da sua conduta são expressões comuns deste sentimento. Outros padrões mais sofisticados podem incluir comportamentos passivo-agressivos como a recusa ao diálogo ou à cooperação com o outro, a chantagem emocional, a imposição coerciva de condições, a ausência propositada com o fim de demonstrar poder sobre a outra pessoa, deixando-a em espera e numa posição de maior vulnerabilidade, decorrente da incerteza da situação.

Na relação, o sentimento de raiva é modulado por razões psicológicas que decorrem muitas vezes da sensação de incapacidade para controlar o outro, a crise relacional ou mesmo o conflito entre os sentimentos de ódio e amor. Por exemplo, o desgosto amoroso e o sentimento de perda levam as pessoas a sentir raiva pelo outro como fonte do seu próprio mal mas também reflectem a zanga consigo mesmas. A zanga por se sentirem culpadas, a zanga por terem acreditado que a outra pessoa as poderia preencher ou completar, ou mesmo actualizar a parte boa de si mesmas, expectativa legítima da relação.

O controlo da raiva começa pela identificação das necessidades do eu na relação, ou seja o que se procura conquistar para si através do outro. Muitas vezes, o vazio afectivo resultante das relações parentais insuficientes ou abandónicas leva a pessoa a procurar no parceiro(a) a correcção do cenário infantil sem se dar conta da verdadeira realidade do outro e da dinâmica relacional. Numa fase inicial da relação, projecta-se na outra pessoa a capacidade de esta ir ao encontro das necessidades do eu. Por vezes, esta expectativa tem contornos mágicos e encantatórios, o outro parece suprir o que faltou durante o crescimento, o regresso ao colo duma mãe doce que ampara e consola, a compreensão e aceitação duma identidade própria, a cumplicidade duma alma gémea que reforça o valor e a existência do próprio.

A ilusão de que o outro pode preencher o vazio é uma armadilha em que se fica refém dos próprios sentimentos. Vive-se apaixonado pelo que o outro representa. Por vezes a paixão pelo outro corresponde a uma projecção do eu ideal, ou seja, a relação amorosa é idealizada como forma de materializar as necessidades do eu. Quando se idealiza, deixa-se de ver realmente a outra pessoa e fica-se dependente e expectante da materialização da idealização. O ciúme reflecte por vezes esse desejo de controlo do outro que não é mais do que o controlo sobre o próprio e do que ele mais necessita.

Quanto maior for esta dependência de alguém para atender às necessidades mais arcaicas e às defesas delas resultantes, maior será a necessidade de controlar o outro na relação para assegurar a sua função. O sentimento de raiva varia conforme a pessoa se sinta defraudada nas suas expectativas, especialmente se este tiver sido o cenário experienciado na infância. A raiva procura recuperar o cenário reparador da relação com o outro, procura reclamar a própria existência do eu perante a iminência do abandono e da perda, procura libertar o eu dos sentimentos de culpa e vergonha inconscientes. Mas muitas vezes, a raiva não é mais do que a manifestação da desilusão perante a confirmação dos mesmos sentimentos negativos vivenciados nas relações do passado.

É verdade que nem sempre é assim. A raiva também surge do cenário de uma outra perda, da perda de alguém que encantou, preencheu e proporcionou os sentimentos gratificantes da relação, sem que nunca se tivesse sentido a traição. Mas essa raiva é mais interior e controlada, guardada pela valorização do que o eu representa. Alguém tão insubstituível como o outro.