O Efeito do Desamor

Na Galeria Carpe Diem em Lisboa, os artistas plásticos João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira apresentam uma obra composta de um filme e dos objectos utilizados na sua construção intitulada Werther Efffect.  O Efeito Werther foi um fenómeno observado na sequência da publicação da obra emblemática do romantismo, Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, em que o personagem encontra no suicídio a única solução para terminar com o sofrimento causado pela paixão não correspondida por Charlotte, já prometida a outro homem. Após a sua publicação em 1774, muitos jovens não só imitaram o estilo do jovem Werther como elegeram o suicídio enquanto única saída para o doente apaixonado.

Dois séculos mais tarde, em 1974, o sociólogo David Phillips identificou um fenómeno de suicídio por imitação que cunhou com o termo Efeito Werther. De acordo com os seus estudos,  a publicitação relevante de uma forma de suicídio ou de outros comportamentos desviantes leva  pessoas em situação de vulnerabilidade a copiarem o comportamento publicitado. A probabilidade do fenómeno acontecer estaria relacionada com o grau de identificação do sujeito à história relatada quer em termos de idade, condição social, área geográfica e obviamente contexto emocional. Phillips atribuía uma importância significativa ao sensacionalismo e glamorização com que os media tratavam os indivíduos que se suicidavam, em particular pessoas famosas ou ídolos de uma determinada população.

Este último aspecto é conceptualizado na escolha da envolvente banda sonora do filme de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. Os intérpretes reproduzem de forma comovente e pessoal as canções de autores como Kurt Cobain, Amy Winehouse ou Nick Drake que morreram muito jovens (de uma forma próxima do suicídio), alimentando a visão da impossibilidade de convergência entre o seu mundo interior e a realidade crua que os envolvia.

A cisão entre o mundo interno, sensível  e potenciador do verdadeiro eu e uma realidade adversa à realização da felicidade é uma das questões fundamentais de Goethe. Para o jovem Werther a força dos sentimentos embate nas imposições do quotidiano, tornando intolerável a aceitação do real e legítima a procura do desfecho fatal. O mundo interior permanece assim intacto perante uma realidade intolerável. Goethe opunha-se à concepção fria e obcecada pela razão do Iluminismo, em que os atributos económicos e sociais prevaleciam sobre os valores humanos propriamente ditos, como os sentimentos, a fantasia e as relações sociais.

O que me pareceu pertinente foi a forma como JPV e NAF transportam para o seu trabalho esta visão utópica mas de alguma forma coincidente com a actualidade, fundamentando as escolhas dos personagens não no sentimento pelo outro mas no princípio do prazer, conceito Freudiano que curiosamente se pode constituir como paralelo à visão de Goethe.

Para Freud, a mente organiza-se numa fase rudimentar pelo princípio do prazer/desprazer, procurando a satisfação directa do desejo pela sua realização, ou indirecta através da alucinação. Em ambos os casos, a mente recorre à descarga motora para se libertar dos estímulos desagradáveis. Podemos entender perfeitamente este funcionamento quando pensamos no bebé e na forma como procura o peito da mãe quando tem fome ou esperneia e grita quando está satisfeito ou insatisfeito.

Segundo Freud a evolução desta mente rudimentar para uma mente propriamente dita só surge com a introdução do princípio da realidade que condiciona o funcionamento do princípio do prazer: “o que se apresentava na mente não era o mais agradável, mas o real, mesmo que acontecesse ser desagradável”. É a partir do momento em que somos confrontados com o real que a mente é empurrada para encontrar uma solução para um problema e desenvolver o que Freud entendeu como consciência.

Para Freud, para Goethe e para os personagens do filme, uma parte da realidade é sempre de algum modo insuportável. Segundo os autores do filme esta insuportabilidade decorre da dificuldade de ver o outro, ou melhor ainda de se suportarem a si próprios. Esta insatisfação permanente com o real e consigo mesmos atravessa toda a obra em que os personagens procuram no sexo, no orgasmo e na alucinação, a libertação da mente e o desejo de se transcenderem já que parecem não conseguir sentir nada.

Num registo pop/psicadélico intercalado pelas danças rígidas do Ballet Triádico, reposição dum bailado criado no contexto da Bauhaus em que figuras humanas assumem contornos de figuras geométricas puras, os personagens procuram através do prazer afastar-se da insuportabilidade da realidade que neste caso resulta não só das imposições do exterior mas essencialmente da frustração no amor.

As alusões ao cinema mudo e as transfigurações das personagens que por vezes se dissipam através dos filtros exuberantes de cores transportam-nos para a percepção duma realidade alterada, centrada na busca incessante do prazer/amor de si, sem nunca o conseguir encontrar. Mariana corre na lama, mas parece que não chega a tocar no chão.

O texto de Nuno Alexandre Ferreira ilustra de forma soberba esta frustração no amor e a procura compensatória do prazer alucinogénico como forma de resolver a dialética constante de procurar na falha do próprio o desejo pelo outro: “Só decidi que ela era a tal quando ela o escolheu a ele”.

A ideia de que o outro só nos interessa quando não está interessado em nós gerando o vazio que nenhum prazer parece conseguir preencher reflecte os sintomas narcísicos da sociedade actual, extrapolados de forma poética num diálogo em forma de travelling fragmentado em que os intérpretes se confundem com as personagens e trocam os nomes (o nome do outro já não interessa mas a representação do que ele significa para mim). Neste diálogo “amoroso” e redundante, o personagem masculino compara-se nos mais pequenos detalhes com o outro, pelo qual a amada está aparentemente apaixonada.

Ao contrário de Goethe, não é a frustração com a realidade externa e a força e prevalência do amor que impelem ao suicídio mas a dificuldade de se conseguir amar, ou seja, é a realidade do próprio que se torna verdadeiramente insuportável.