Crise no casal: o espaço do Eu e do Outro

As crises na relação são invariavelmente pontuadas pelo ataque ao Outro. De alguma maneira o Eu sente-se ameaçado, angustiado; as expectativas que coloca no Outro estão comprometidas. O investimento na pessoa amada é o investimento num espaço outrora preenchido – o Eu imagina o que o Outro pode ser ou já foi e que por agora deixou de ser, ou seja a relação procura sempre satisfazer as necessidades do Eu.

A construção do lugar do Outro é uma construção do Eu e do seu aparelho psíquico. Esta construção tem a primeira fundação na relação do bebé com a sua mãe e com os primeiros cuidadores. Quando pensam em engravidar os pais já pensam o lugar do filho tal como o seu lugar foi pensado pelos seus próprios pais, injectando neste uma ideia de relação e compromisso. O cuidador quer em grande medida dar ao seu bebé o que resultou da sua própria experiência como filho.

Segundo o psicanalista Carlos Amaral Dias, o nascimento é o protótipo da angústia resultante da perda daquilo que o bebé tinha no ventre materno. O vazio da separação é então preenchido pelo Outro, isto é, pelo que o cuidador projecta na criança e pelo que a criança fantasia sobre o cuidador. O bebé está a mercê da mãe: o bebé queixa-se quando a mãe se ausenta, o bebé angustia-se quando a mãe não está e devia estar. A construção do amor resulta, portanto, do preenchimento do vazio da separação.

Para o histórico da psicanálise Donald Winnicott, a mãe (cuidador) é o ambiente, na medida em que facilita ou perturba o desenvolvimento. A mãe atende as necessidades do bebé, atribui-lhes significado mas também ajuda-o a tolerar a ausência e a capacidade de ficar só, porque o bebé sabe que pode confiar (ou não) no amor da mãe por si. O amor consistente da mãe engrandece o bebé, fá-lo sentir-se alguém, dota-o de expectativas sobre o Outro.

A capacidade de estar só e a forma como cada um constrói a sua identidade resulta deste processo de inviduação em que são atribuídas expectativas em relação ao Outro. Se para alguns, o Outro é fiável e digno de confiança, para outros a pessoa amada representa o que o Eu gostaria de ter tido e que não teve. Esta necessidade inconsciente do Eu transforma-se por vezes no controlo obsessivo do Outro, no desejo de o engolir ou por outra ordem de razões, no medo de abandono, estando neste caso em causa uma ideia da sobrevivência psíquica do Eu.

Nesta perspectiva, o ataque à pessoa amada é muitas vezes a tentativa do Eu defender-se do que já viveu. Na relação, a pessoa regride para um cenário anterior e para o que este lhe proporcionou. Durante a adolescência, dão-se os primeiros lutos relativos às imagens parentais. O adolescente desliga-se dos seus cuidadores para começar a investir noutros mas sempre com a memória dos primeiros. Quando os vínculos parentais são fortes e saudáveis, o Eu torna-se mais flexível no investimento no Outro, o espaço do Outro é o espaço da repetição e da recriação da relação. Uma criança cujas necessidades foram satisfeitas acredita no seu potencial para agradar ao outro, espera que o outro encontre em si a satisfação da relação. A baixa auto-estima reflecte uma falha nas necessidades de satisfação do Eu. O indivíduo que não foi validado enquanto criança ou adolescente, procura resolver este dilema na relação, enquanto adulto, projectando no Outro o vazio da falha parental. São exemplos desta dinâmica as relações fusionais – o Eu deseja fundir-se com o Outro e adquirir as suas características sentidas como um incremento do seu poder interno. Noutras circunstâncias, o indivíduo escolhe um parceiro(a) que reproduz (repete) a falha parental, na expectativa de a poder corrigir, transformando a sua história de relações numa sucessão de frustrações.

Por outro lado, a relação implica um certo afrouxamento nas fronteiras do Eu, já que se espera que o espaço do Outro não implique a negação do meu. A identidade consolidada na adolescência permite avançar para a intimidade desde que esta não constitua uma ameaça à identidade do Eu e à preservação da sua auto-estima. A intimidade está dependente do equilíbrio entre duas identidades suficientemente seguras que permitam a liberdade da auto-revelação e da entrega sem medo. Por exemplo, quando alguém é capaz de partilhar os seus sentimentos e vulnerabilidades sem receio da resposta do outro, o casal fica mais próximo, as barreiras defensivas do Eu baixam, estabelece-se a confiança na expectativa que o Outro corresponda de maneira equivalente ao agir do Eu. As relações mais funcionais caracterizam-se por esta simetria de posições, em que muitas vezes a atracção resulta de um desejo de complementaridade e não de fusão.

As crises na relação traduzem um desequilíbrio entre as forças identitárias e de preservação do Eu, dependente da resolução de conflitos anteriores. A terapia procura indagar sobre estas necessidades não satisfeitas no espaço do Eu que se projectam no desejo do Outro cumprir funções para as quais não está mandatado. Pessoas que apresentem falhas narcísicas (baixa auto-estima) procuram por vezes dominar a relação de forma a sentirem-se seguras e evitarem o abandono que sofreram na infância. Outras procuram alguém que lhes dê razão para existirem, adaptando-se à vontade do Outro, tornando-se invisíveis ou reduzindo o seu espaço de acção, despojando-se de vontade e até de prazer.

Os problemas do desejo estão por vezes relacionados com esta cedência do espaço do Eu ao Outro. Se o Outro me controla ou se no polo inverso eu me sinto dependente do Outro, a minha vontade e o meu desejo ficam condicionados e por vezes apagam-se. Manter o espaço e a distância necessários entre a identidade do Eu e do Outro estimula o desejo através da fantasia do Eu sobre o Outro e vice-versa, ao permitir que a criatividade e subjectividade do Outro me possam surpreender.

As crises na relação são também sinónimos de mudança ou de colapso do equilíbrio anterior. Alguém questiona o seu papel, o seu sentido de vida ou o projecto da relação. Mesmo quando alguém procura outra pessoa fora da relação para suprir algum tipo de necessidade individual ou conjugal como nos casos de infidelidade, procura-se muitas vezes um novo equilíbrio, uma nova conjugalidade, uma revisão dos pressupostos do espaço do Eu e do Outro e não necessariamente o fim duma história a dois.