O Passado, filme mais recente do realizador iraniano Asghar Farhadid, surge na continuidade do seu filme anterior, A Separação, voltando a tratar com enorme acuidade e densidade psicológica as temáticas inerentes à separação e neste caso ao período pós-separação. A acção do filme decorre nos subúrbios de Paris com a visita do iraniano Ahmad à sua mulher francesa Marie, após 4 anos de separação, com o intuito de assinarem o divórcio. Ahmad encontra Marie vulnerável, temerosa, envolvida numa nova relação que arrasta consigo um drama familiar repleto de segredos, dúvidas e rivalidades entre pais, filhos e os seus “substitutos”.
O interesse fundamental do filme é trazer à coacção um tema não só universal mas de inegável actualidade: como encarar o presente quando o passado ainda ocupa o lugar do outro? Como conseguir olhar os laços do passado e compreender o lugar dos que ficam e dos que surgem de novo na vida familiar? Como compreender e ajudar os filhos, cujo mundo despedaçado entre fantasias, memórias e receios inconscientes de abandono e destruição evocam não mais do que a necessidade de afecto e protecção?
Repor o lugar do outro transporta consigo o luto da pessoa outrora amada ou ainda guardada através significado de cada vinculação e do que ela representa. Segundo Kernberg (2008), quanto mais intenso for o afecto, mais significativa será a relação interna com a representação do outro e quanto mais significante for esta relação interna mais intensa será a sua resposta emocional… Como se esta intrincada equação fosse possível de resolver somente pelo passar do tempo ou por tomar outra pessoa como substituto do espaço que ficou por preencher – o espaço que não é somente o espaço mental, afectivo e psicológico do outro mas também o que a outra pessoa vem preencher, em certa medida o que se tenta actualizar e reparar do passado através da relação.
Quando Ahmad chega a Paris todas as personagens, crianças e adultos, membros de três famílias reagrupadas numa tentativa duma nova família, estão à deriva num leque de emoções contraditórias sobre o seu lugar na relação com o outro. As expectativas que têm do pai, mãe, irmão, marido, mulher, filho, remetem para as relações anteriores e para o significado das mesmas, rompendo de forma imprevisível e descontrolada o quotidiano familiar. Por vezes o lastro do passado toma a forma do desespero, da raiva e do ódio como se tratasse dum vómito que não se consegue parar. Os objectos e lugares da casa tornam-se memórias do passado e desejos do presente. Durante o filme a casa onde se tenta (sobre)viver está em obras, uma metáfora duma transição penosa em que todos parecem perder a razão sufocados pela sucessão de acontecimentos, pela revelação dos segredos, pelas manobras conduzidas pelo desejo inconsciente de resolver o passado e preservar o pouco que resta deste.
As crianças e adolescentes personificam de forma elaborada estes desejos inconscientes e manobras de retaliação, mas os adultos também não escapam aos sentimentos de ciúme, nostalgia e dúvida sobre o significado do outro. O maior segredo está nas mãos da filha de Marie, Lucie, de 18 anos, que tenta boicotar a relação da mãe na expectativa que o novo namorado, Samir, não lhe roube o que ainda sobeja do afecto maternal. O filho de Samir, Fouad, olha com estranheza Ahmad quando este irrompe pelo espaço familiar e num gesto de afecto prontifica-se a secar o cabelo da ainda sua mulher. Para o pequeno Fouad de 5 anos, a mãe adoptiva é a única e desesperada saída para substituir a mãe biológica, em coma no hospital, na sequência duma tentativa de suicídio. Num momento comovente, o pequeno Fouad não quer acompanhar o pai de regresso à casa natal pois não consegue tolerar a ideia da ausência da mãe ou duma mãe que desistiu de viver e logo desistiu de si. Fouad responde perante a sua própria sobrevivência, os sentimentos irrompem porque se luta pelos afectos primários, o desejo securizante dum pai e duma mãe, o receio do abandono e da morte.
Ahmad traz ao conflito familiar a racionalidade possível que permite compreender os afectos e as necessidades emocionais de cada uma das personagens. Quase como um terapeuta, Ahmad tenta criar pontes entre o passado e o presente, ajudar cada um e a ele próprio a compreender e a aceitar as suas próprias motivações.
O mérito do filme O Passado é não só o de lançar o repto sobre a necessidade de resolver o passado para avançar no presente como também a dúvida sobre a possibilidade de resolver o passado ou até sobre a possibilidade do presente persistir para além do passado. Esta dúvida impossível remete o espectador para um dos receios mais arcaicos da relação, o que Margaret Mahler (1975) intitulou a ansiedade da separação. Esta autora concluiu da observação de bebés, que entre os 18 e 24 meses, o bebé sofre duma grande ansiedade quando alterna entre querer separar-se da mãe e explorar a sua autonomia e o receio de abandono que o leva a agarrar-se de novo à mãe na procura de consolo e do preenchimento mágico das suas necessidades afectivas. Este conflito interno que Mahler denominou ambitendência pode persistir na idade adulta e descreve as flutuações internas resultantes do desejo do outro e do receio de abandono, que pode evoluir para sentimentos de ambivalência, sentimentos mistos ou contraditórios relativamente à outra pessoa.
Ainda na década de 70, Bowlby e Ainsworth concluíram que os bebés cujas mães foram consistentes e afectivas gerem de forma mais eficaz a separação e a proximidade com o outro, tanto na infância como na idade adulta, por se sentirem mais seguros de si próprios. O ambiente facilitador duma mãe estável proporciona a confiança em si mesmo e na resposta do outro através da expectativa de que a mãe quando sai da sala irá voltar, porque valoriza e gosta do bebé e como tal este sente-se valorizado internamente.
Lacunas graves no ambiente protector da mãe levam a pessoa em momentos de separação e perda a sentir grande raiva e desespero que remetem para uma angústia arcaica de abandono bem como para uma culpabilidade interna resultante da ambivalência de sentimentos relativamente ao outro. Esta ambivalência traduz-se por vezes no ataque agressivo à outra pessoa e à parte que esta representa dentro do eu, numa enorme frustração e melancolia enquanto não se consegue integrar os aspectos positivos e negativos do outro e de si próprio na representação da relação. É quando o sujeito está diminuído e vulnerável que dispara contra o parceiro anterior, identifica-se com o agressor, culpabiliza-se a si próprio e aos filhos como no caso de Marie e da filha Lucie, projectando nos outros os pedaços rejeitados de si próprio e da sua angústia lancinante de abandono e conflito interno.
Na cena final do filme, Samir visita a sua mulher em coma no hospital e espalha o seu perfume preferido pedindo-lhe que lhe aperte a mão como sinal que gosta de si. Samir procura uma resposta do passado, procura saber se sua mulher gostava realmente de si, quem sabe se não estará à procura do afecto reconfortante duma mãe que lhe possa facilitar a separação e a assumpção duma nova vida ao lado de Marie.