A Dominação Masculina

As questões do género parecem ter caído em estereótipos que as pessoas recusam por considerar que o domínio do masculino de alguma forma já terminou ou já não é determinante nas escolhas individuais. Homens e mulheres nos dias de hoje ainda agem consciente ou inconscientemente segundo uma estrutura social organizada sob o primado do masculino. Pierre Bourdieu, na obra A Dominação Masculina, publicada em 1998, desmonta de forma complexa e fascinante esta mesma estrutura. Apesar das mudanças resultantes dos movimentos feministas, das políticas na área da igualdade e dos estudos académicos na área do género, mulheres e homens estão actualmente mais confrontados não só com o seu papel de género como também com as expectativas do papel do outro.

Bourdieu parte da análise etnográfica da sociedade berbere de Cabília para por em evidência o inconsciente androcêntrico e uma visão dominante “falo-narcísica” que são comuns a todas as sociedades mediterrânicas e que ainda persistem hoje em estado parcial ou fragmentário na forma como nos pensamos e nos organizamos socialmente.

Segundo este autor, a ordem social funciona como uma máquina simbólica que atribui significado às divisões sexuais e ao corpo como realidade sexuada para perpetuar a dominação masculina em que se baseia. A construção social das diferenças entre os sexos biológicos é realizada de acordo com uma visão mítica do mundo em que a mulher tenta corromper o homem para depois este a dominar. Por exemplo, a virilidade, nos seus aspectos éticos, princípio da conservação e do aumento da honra, coragem física ou moral, é indissociável da demonstração da potência masculina necessária à reprodução natural. Na tradição de Cabília é o homem que dá a vida, e as palavras que designam o esperma significam também encher e prosperar o que está vazio e estéril. À relação sexual estão associadas uma série de outras relações homólogas que justificam a divisão sexual do trabalho, a estrutura do espaço doméstico e do espaço público, a estrutura do tempo, o dia de trabalho e o ano agrícola, bem como o ciclo de vida com os momentos de ruptura masculinos e os longos períodos de gestação femininos.

A definição social dos órgãos sexuais, ao longo da História, vai muito para além do simples registo das suas propriedades naturais. Um cirurgião na Idade Média descrevia a vagina como falo invertido observando uma visão da sexualidade da mulher e da sua posição social em que o princípio masculino surge como medida de todas as coisas. Os anatomistas do início do século XIX tentaram encontrar no corpo da mulher a justificação do estatuto social que lhes é atribuído, apelando para as oposições tradicionais entre o interior e o exterior, a sensibilidade e a razão, a passividade e actividade.

Bourdieu sublinha que quando os dominados aplicam àquele que os domina esquemas que são o produto da dominação, os seus actos de conhecimento, são inevitavelmente, actos de reconhecimento, de submissão. Tomando como exemplo a relação sexual, esta surge como “uma relação social de dominação através do princípio da divisão entre o masculino/activo e o feminino/passivo e porque esse princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou inclusive, em última instância como reconhecimento erotizado da dominação”.

Nesta perspectiva, Bourdieu desenha uma sociologia política da sexualidade em que as práticas e as representações dos dois sexos são assimétricas. Os homens tendem a pensar a relação amorosa numa lógica de conquista e o acto sexual é concebido como uma forma de dominação e de apropriação, orientado para o orgasmo. Por seu lado, as mulheres estão socialmente preparadas para viver uma sexualidade como uma experiência íntima e fortemente carregada de afectividade que não inclui necessariamente a penetração, mas pode englobar um amplo leque de actividades (falar, tocar, acariciar, abraçar, etc). Mesmo em práticas sexuais simétricas como a fellatio e o cunnilingus, os homens tendem a vê-las como actos de dominação através do poder de dar prazer. Sendo assim, o falso orgasmo feminino não é mais do que a constatação da dominação masculina, ao esperar que as mulheres confirmem a virilidade dos homens, através do orgasmo.

Desta forma, as diferenças visíveis entre o corpo feminino e masculino ao serem entendidas e incorporadas segundo os esquemas da visão androcêntrica garantem as significações e os valores que estão de acordo com esta visão: “Não é o falo (ou a sua ausência) que fundamenta esta visão do mundo, mas é esta visão do mundo que, ao estar organizada segundo a divisão em géneros relacionais, masculino e feminino, pode instituir o falo e a diferença entre os corpos biológicos em fundamentos objectivos da diferença entre os sexos, no sentido de géneros construídos como duas essências sociais hierarquizadas”.

Bourdieu compara a postura submissa a que as mulheres cabilas estão sujeitas à forma como se ensinam as mulheres a ocupar o espaço, a caminhar e a adoptar posições corporais específicas evitando determinados movimentos mais expansivos. Já os rapazes são preparados para cortar o vínculo com a mãe e com tudo o que está associado ao feminino através de ritos orientados para a virilização, ainda hoje presentes, como o corte de cabelo, a circuncisão, desportos e jogos viris. Esta aprendizagem está associada a uma moral feminina construída através duma disciplina constante de todas as partes do corpo em oposição à moral de honra masculina, confrontativa, caracterizada pelo olhar em frente, a postura erecta que remetem para uma ideia de rectidão, de poder e de toda uma ética, política e cosmologia.

A virilidade do homem é validada por outros homens sob a forma de ritos de instituição, sobretudo escolares e militares, que promovem comportamentos violentos, de desafio ou negação do perigo, com o intuito de reforçar a solidariedade entre homens e a aceitação do estatuto de dominador. Algumas formas de coragem não são mais do que formas de cobardia que reflectem o medo de perder a estima e a admiração do grupo e do homem ser remetido para a categoria tipicamente feminina dos “fracos”, dos “medricas”, dos “delicadinhos”, dos “maricas”.

Os homens acabam assim por estar também pressionados a corresponder a uma ética e uma moral sob pena de se sentirem excluídos e desvalorizados socialmente. Práticas como as violações colectivas, praxes académicas, bullying e outros actos de opressão e humilhação baseiam-se no “temor viril de ser excluído do mundo dos homens ‘fortes’, os chamados homens ‘duros’, porque são duros em relação ao próprio sofrimento e, sobretudo, em relação ao sofrimento dos outros”.

Segundo Bourdieu, a organização simbólica da divisão sexual do trabalho e de toda a ordem natural e social não deriva dos factores biológicos mas duma construção arbitrária com base nos mesmos, legitimando de uma forma aparentemente natural a visão androcêntrica. A violência simbólica não reside na falta de consciência desta estrutura mas na perpetuação dum dispositivo social, cujo fundamento principal é a troca de bens simbólicos centrada no mercado matrimonial, em que as mulheres surgem como objectos ou símbolos do capital em poder dos homens. Quando os dominados aplicam às relações de dominação categorias do ponto de vista do dominador, fazendo-as parecer naturais, institui-se uma violência simbólica de consentimento e de aceitação de um papel e de uma identidade que neste caso é desvalorizadora da mulher ou de qualquer grupo estigmatizado em relação ao estigmatizador.